O PRÍNCIPE DAS BORBOLETAS
Dois dias após o décimo primeiro aniversário de John
Farrington, uma migração de borboletas-monarca pousou na sua casa.
Quando John saiu nessa manhã, viu que as borboletas
cobriam a parede lateral, como se fossem um tapete vivo. As asinhas
cor-de-laranja abriam e fechavam, e o padrão do tapete estava sempre a mudar.
Pequenos cachos de borboletas decoravam o peitoril do patamar, as cadeiras de encosto,
o carro e parte do pátio.
John nunca vira nada mais belo. Ficou em silêncio para não
as assustar. Embora sentisse um formigueiro nas mãos, mortas por pegar num dos
bichinhos, retraiu-se com medo de que o bando levantasse voo. Mal se atrevendo
a respirar, foi-se afastando da casa. Finalmente, sentou-se na relva, o mais
devagar que conseguiu.
Toda esta tranquilidade não se coadunava muito com ele.
John era um rapaz impulsivo por natureza, e preferia correr e gritar a estar
quieto. Só que agora estava determinado a abrir uma exceção. O seu autocontrolo
foi então recompensado por uma borboleta que veio pousar na ponta da sua
sapatilha. Abriu e fechou as asas uma vez e, depois, começou a subir pela perna
do rapaz.
Entretanto, outras borboletas vieram na sua direção e
aterraram no seu ombro esquerdo. Uma, particularmente ousada, veio mesmo
pousar-lhe na mão. John engoliu em seco, nervoso, e tentou dominar o medo.
Afinal, o que haveria de mais inofensivo do que uma borboleta? No entanto, o
rapaz sentia que algo de estranho estava para acontecer. Algo de pouco natural…
Foi então que as borboletas começaram a falar com ele.
Milhares de vozes sussurravam na sua mente, tão delicadas como um roçar de asas
na sua face. As vozes pediam ajuda. Faziam-no sem palavras mas de forma clara.
Uma sensação de pânico percorreu a espinha de John, que
teve sérios problemas em ficar quieto. Fechando os olhos, pensou: Como?
Porquê?
Mais borboletas aterraram no seu corpo imóvel: havia
borboletas nas suas pernas, nos seus braços, nos seus ombros. Eram criaturas
frágeis, delicadas e… assustadas. Enquanto se dirigiam a ele, a imagem de um
prado, verde e tranquilo, tomava forma na sua mente. “Perdemo-nos no caminho”,
sussurraram as borboletas. “Que caminho?”, pensou John. “O caminho que conduz a
casa. Existe um lugar verde aqui perto, onde costumamos parar para comer e
descansar. Só que agora não conseguimos encontrá-lo. Era um espaço tão grande…
Para onde terá ido?”
John percebeu que se referiam ao prado, um lugar onde
brincara com frequência. No último setembro, porém, uma construtora tinha
começado a transformá-lo em centro comercial. A mente do rapaz reproduziu, sem
querer, a imagem que o prado apresentava agora e o desespero das borboletas
inundou-lhe o coração. “O que havemos de fazer? Este era o último santuário que
conhecíamos nesta etapa do nosso percurso até casa. Para onde iremos agora?”
A pergunta foi feita, simultaneamente, por milhares de
borboletas e trazia consigo os pensamentos de muitas outras, acabrunhadas pela
tristeza. Uma voz ergueu-se e ressoou clara: “Ajuda-nos!”
“Mas, o que posso eu fazer?” pensou John, cuja alma se
debatia entre o medo e o deslumbramento. “Será que existe um outro local verde
aqui perto?”
O rapaz lembrou-se que, num dia do início desse mês, tinha
ido vender revistas para angariar fundos para o recreio da escola. Tinha ido de
bicicleta até um local distante e tinha-se perdido. Nesse mesmo local, existia
ainda um oásis de verdura que os bulldozers não tinham destruído. Mal a imagem
do local se formou na sua mente, as borboletas pediram, excitadas e aliviadas:
“Leva-nos até lá.” “Mas como?” perguntou John.
A resposta das borboletas não surgiu sob a forma de
palavras, imagens ou sentimentos. Cercaram o rapaz, roçando nele as asas, e
derramaram as suas escamas minúsculas nos seus olhos, braços e pernas.
Então, abrindo as asas inesperadas que pendiam dos seus
ombros, John levantou voo.
O seu coração quase rebentou de felicidade por poder
deslizar pelo ar ameno. Flutuando ao sabor de brisas suaves e acompanhado por
milhares de seres cintilantes e coloridos, aos quais agora se assemelhava, o
rapaz sentia-se acompanhado de uma forma que nunca antes experimentara.
“Conduz-nos ao prado”, pediu o bando.
Abanando as suas asas delicadas, John ergueu-se no ar de
forma a ver o rumo que deviam seguir. Mal o encontrou, logo guiou as borboletas
por sobre as casas. Voaram a manhã toda, ora descansando numa sebe, ora
repousando numa árvore. “Só falta mais um bocadinho”, prometeu-lhes. Quando,
por fim, alcançaram o prado, as borboletas repousaram na sua verdura bravia com
um tal sentimento de alívio que John se sentiu bafejado por um vento cálido.
O rapaz passou a manhã toda com elas, rastejando ao longo
de caules verdes e esguios, desenrolando a língua em busca de néctar,
apreciando o sol a bater nas suas asas. Por volta do meio-dia, sentiu que
estava em apuros. “Será que me podem enviar de volta? A minha mãe vai ficar
furiosa comigo, porque não lhe disse onde ia.”
“Fica connosco”, sussurraram as borboletas. “Fica
connosco.”
John sentiu o sol nas asas, asas que poderiam erguê-lo até
ao céu, conduzi-lo para longe dali, e desejou permanecer borboleta para sempre.
Mas lembrou-se de que os pais estariam em cuidados e de que sentiriam a sua
falta. E de que ele sentiria a falta deles.
“Não posso ficar”, disse com tristeza. “Tenho de ir para
casa.”
Então, as borboletas juntaram-se todas e tudo voltou a ser
como antes. Como uma borboleta que se transforma de novo em lagarta, John
perdeu as asas e voltou a ser um rapaz, encandeado pela luz do sol. Tinha os
pés cheios de bolhas quando chegou a casa, e estava de facto em apuros. Mas não
se importou: trocaria sempre, de bom grado, uma semana no chão por um dia com
asas.
A partir dessa altura, todas as primaveras John esperava
pelas borboletas, que não tardavam a vir. Pediram-lhe ajuda por duas vezes
mais. E, das duas vezes, o rapaz transformou-se em borboleta e conduziu-as a um
lugar seguro. No ano em que fez dezassete anos, o bando deixou de aparecer. O
coração de John doía de tantas perguntas. Será que ficara velho demais? Será
que o tinham esquecido? Ou será que algo pior tinha acontecido? Fosse qual
fosse a razão, este foi o período mais doloroso da sua vida. Mas nunca
conseguiu explicar à mãe porque se sentia tão desesperado, ou porque chorava na
cama à noite.
No ano seguinte, entrou para a faculdade, onde se
especializou em estudos sobre borboletas. Mas, embora os professores o tenham
achado um aluno brilhante, John passou um mau bocado. Não conseguia colecionar
borboletas e colocá-las em caixas com alfinetes espetados. Preferia estudá-las
no seu habitat natural. Ficava doente só de ver coleções de borboletas. Acabou
por ter de abandonar os estudos e continuar a trabalhar por conta própria.
Trinta anos mais tarde, John persuadiu o Congresso
norte-americano a aprovar a lei do “Trilho das Borboletas”, uma lei que
consagra a preservação de uma série de espaços verdes para que as
borboletas-monarca possam efetuar a sua migração anual em paz.
A maioria dos investigadores considera que foi John
Farrington quem salvou estas borboletas da extinção.
Um dia, quando John já era velho, e deixou de poder andar,
a enfermeira que tomava conta dele levou-o até um lugar ensolarado.
─ Acha que fica bem aqui? ─ perguntou-lhe,
aconchegando-lhes as pernas com um cobertor, antes de se ausentar.
John acenou afirmativamente e a enfermeira foi para dentro
de casa, deixando-o a gozar o calor e o silêncio daquele espaço.
Alguns minutos depois dela se ter ido embora, uma nuvem de
borboletas rodeou-o. Milhares de asas roçaram a sua face e escamas minúsculas
caíram sobre os seus olhos, braços e pernas.
Com o coração cheio de alegria, John Farrington esticou as
suas asas pretas e laranja… e voou dali para sempre.
Bruce
Coville; John Clapp
The
Prince of Butterflies
Orlando,
Voyager Books, 2002
(Tradução e
adaptação)
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